Jornal da USP / Texto: Ivan Conterno / Arte: Rebeca Fonseca
Já aconteceu com todo mundo: você está usando o computador ou videogame e, de repente, a energia cai. Todos os arquivos ou jogos abertos são reiniciados a partir do estado em que foram salvos pela última vez e você perde grande parte do que já tinha sido feito.
Embora os programas de hoje se preocupem em salvar etapas automaticamente, isso ainda pode acontecer, mas definitivamente não ocorrerá quando começarmos a usar máquinas feitas com memristores, ou seja, com memória resistiva (ReRAM). Isso porque, com os memristores, não haverá a divisão das informações dos eletrônicos em unidade de armazenamento (que não depende de energia) e memória instantânea (que apaga com o aparelho desligado).
Uma nova maneira de fabricar memórias computacionais como essas foi criada por cientistas da USP e teve o pedido de registro aceito pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) em novembro de 2022.
Marina Sparvoli, pós-doutoranda do Instituto de Física (IF) da USP, em colaboração com outros pesquisadores da Universidade, desenvolveu um mecanismo de memória baseado nos memristores a partir de materiais nunca antes combinados.
O protótipo consiste numa camada de grafeno depositada entre contatos de indium tin oxynitride (Iton) — um semicondutor ainda pouco pesquisado — e de alumínio, como um sanduíche. A eletricidade passa por ele gerando um campo eletromagnético. Dependendo da tensão, forma-se ou não um filamento responsável pelo fenômeno de comutação resistiva, de alta e baixa resistência.
A transparência do material também poderia permitir o uso em arquiteturas eletrônicas próximas à superfície das telas dos aparelhos, reduzindo ainda mais o espaço ocupado, embora esse uso ainda não tenha sido investigado.
Apesar de terem sido teorizados pela primeira vez em 1971, pelo filipino Leon Ong Chua, os mecanismos resistivos só começaram a ser testados em 2008, com a introdução da nanotecnologia. A grande vantagem é que, ao contrário das memórias de eletrônicos atuais, as informações contidas nas memórias resistivas não somem quando o aparelho é desligado.
Ainda não existem computadores com essa tecnologia, por isso os testes são feitos em estações de prova de semicondutores (probe station).
Os computadores, videogames e smartphones que usamos no dia a dia possuem as chamadas memórias de acesso aleatório (RAM). Esse é um tipo de armazenamento volátil de leitura e escrita. Ao contrário dos componentes de armazenamento de dados, onde gravamos os arquivos, elas são rápidas o suficiente para trabalhar com as entradas e os programas executados continuamente enquanto usamos o aparelho.
Essas informações normalmente ficam disponíveis apenas enquanto a máquina está ligada. Por isso, todos dados voláteis são perdidos quando reiniciamos o dispositivo, como explica a analogia feita pela pesquisadora ao Jornal da USP: “A RAM é a geladeira e a memória principal é o supermercado”.
No caso da memória ReRAM, porém, os dados continuam disponíveis na falta de energia, sem prejuízo da velocidade de acesso e de escrita. Além dessa grande vantagem, os componentes eletrônicos desse tipo são minúsculos e também permitirão a fabricação de aparelhos muito mais velozes.
Quando ligamos um computador convencional, o sistema operacional — como Windows, MAC OS, Linux ou Android — é copiado do dispositivo de armazenamento de dados, mais lento, para a memória RAM, de alta velocidade. Esse processo demorado, por exemplo, seria dispensado com o uso das memórias ReRAM. Além disso, os memristores são minúsculos, compreendendo algumas poucas centenas de átomos de espessura, e podem se comportar como conexões neurais biológicas.
Esse tipo de memória trabalha com estados de resistência alta e baixa, que correspondem ao código binário da linguagem de máquina (0 e 1). Já nos computadores convencionais, essa escrita é representada pelas tensões (∆V) — e não pela resistência (Ω) — baixa (0) e alta (1). Os filamentos de memristores podem ocorrer na escala dos nanômetros, ou seja, de milionésimos de milímetro (0,000.000.001 metro), o que promete uma infinidade de informações salvas em um minúsculo espaço de armazenamento.
A computação resistiva ainda não é utilizada em aparelhos comerciais. Embora alguns componentes já sejam vendidos separados, eles têm os cientistas como público-alvo. Em relação à tecnologia hoje utilizada nos computadores domésticos, de metal-óxido-semicondutor complementar (CMOS), ela é mais compactável e não está limitada pelos gargalos de processamento em série. Ou seja, podem enviar dados simultâneos ao invés de formar filas durante as transmissões nas linhas de comunicação internas.
Os arquivos salvos também ficariam muito menos suscetíveis a serem apagados acidentalmente. Para destruir a informação armazenada nesse novo tipo de memória, precisa ser aplicada uma forma muito específica de campo magnético que não existe na natureza. Para efeito de comparação, os dados contidos em unidades de armazenamento comuns podem ser destruídos apenas passando um ímã por perto.
O professor José Fernando Chubaci, que supervisiona Marina no pós-doutorado, conta que a aplicação de Iton a memórias resistivas nunca foi feita antes: “Esse é um projeto na fronteira do conhecimento mundial, que terá aplicação no mercado internacional daqui a 10, 15 ou 20 anos. A doutora Marina conseguiu criar memórias resistivas usando grafeno com o Iton, o óxido de índio-estanho com dopagem de nitrogênio, ampliando o espaço de pesquisa na área e trazendo conhecimento ao nosso laboratório.” Normalmente, as memórias resistivas são baseadas em dióxido de titânio (TiO2), um sólido branco que inclusive pode ser tóxico.
Marina explica que o Iton é uma variação do óxido de índio e estanho (ITO), este último usado no touchscreen, como telas de celulares: “A inovação está em usá-lo com o nitrogênio”, o que explica o “N” da sigla. O grafeno, por sua vez, é uma forma cristalina plana baseada no carbono, que é um dos elementos mais abundantes no planeta. Esse cristal é formado por uma única camada de átomos. Mesmo sendo ultrafino, é extremamente forte e tem uma das melhores propriedades eletrônicas entre todos os materiais existentes. No Brasil, esse derivado já é produzido pelo Centro de Tecnologia em Nanomateriais e Grafeno (CTNano) e pelo Projeto MGgrafeno, ambos com participação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além da UCSGraphene, fábrica vinculada à Universidade de Caxias do Sul. Recentemente, o material tem sido comercializado também pela empresa Gerdau Grafeno.
Do ponto de vista da sustentabilidade, o grafeno é interessante pois, nesse caso, o carbono não é ligado como polímero. Ele poderia ser destruído de forma natural, bastando aquecê-lo em altas temperaturas. O Iton aguenta temperaturas ainda maiores, portanto ele não sofreria danos nesse processo e poderia ser separado. Chubaci ressalta, entretanto, que esse assunto ainda não foi objeto de estudo: “Nós ainda estamos tentando garantir a memória resistiva, que é o salto de qualidade atual. Não se discute ainda a reciclagem. É uma especulação tendo em vista essa preocupação. A possibilidade existe em termos de discussão.” Quanto aos custos em relação à tecnologia CMOS, o grafeno tende a baratear a produção, já que é feito a partir do grafite, enquanto o Iton tende a encarecer, por ter índio na composição.
“Esse é um projeto na fronteira do conhecimento mundial, que terá aplicação no mercado internacional daqui a 10, 15 ou 20 anos. A doutora Marina conseguiu criar memórias resistivas usando grafeno com o Iton, o óxido de índio-estanho com dopagem de nitrogênio, ampliando o espaço de pesquisa na área e trazendo conhecimento ao nosso laboratório.”
As investigações de Marina com memristores começaram em 2016, quando era professora visitante do programa de pós-graduação em Ciência e Engenharia de Materiais na UFABC e pós-doutoranda em Ciência da Computação pela mesma universidade. Atualmente, ela possui dois pós-doutorados e desenvolve outra patente. Trata-se de uma técnica de fabricação da celulose bacteriana (ou biofilme), que pode ser obtida através de fermentação de chá verde (jun e kombucha, bebidas de origem chinesa). “A diferença entre eles é que o primeiro leva mel no processo e o kombucha, açúcar. Na fermentação é produzido ácido acético, gás carbônico e a celulose”, explica Marina. “Como a celulose geralmente não é aproveitada na bebida probiótica, o excesso é descartado. Mas bem pode ser empregado em diversas áreas como textil e médica.”
Marina conta que, a partir dessas informações, o grupo chegou à conclusâo que o material pode ser empregado na área de dispositivos eletrônicos, depois de serem feitas algumas caracterizações. “E funciona como sensor”, diz.
A cientista já possui seis patentes na área e todos os seus projetos são enviados ao Centro de Inovações da USP (InovaUSP), que orienta pesquisadores a respeito dos documentos e procedimentos necessários para o registro junto aos órgãos competentes.
Os protótipos são testados em estações de sondagem da USP. No Instituto de Física da USP, o trabalho com a memória resistiva teve a colaboração do professor Chubaci e do técnico de laboratório Fabio de Oliveira Jorge. Na Escola Politécnica (Poli) da USP, colaboraram os pesquisadores Guilherme F. B. Lenz e Silva, do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais (PMT), e Ronaldo Domingues Mansano, do Centro de Engenharia Elétrica (CEE).
Marina apresentou o invento em diversos encontros, com destaque para a Conferência Mundial de Carbono no Imperial College of Science de Londres, no Reino Unido, em julho de 2022. A próxima etapa será testar a influência da luz na memória construída com esse material.
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